quarta-feira, dezembro 27, 2006

Resquícios da vida

Esta é uma carta para matar saudades das coisas boas que nos deste. Sempre foste uma pessoa muito especial, sempre o serás. Oxalá possas ler esta carta.


Olá, estás boa? Já cá não vinha há algum tempo: já sabes que eu ando sempre de viagem e a correr de um lado para o outro, e o tempo não me tem dado para tudo infelizmente. Vamos lá ver se a partir de agora acalmo um pouco. Mas deixemo-nos de falar mim, quero saber é como tu andas. Como vão essas pernas? Espero que não tenhas andado por aí pela quintã com este frio todo e o lamaçal que lá se criou por causa das chuvadas das últimas semanas. E mete lenha no fogão que está um frio desgraçado. Até já deviam ter trocado estas janelas, que para além de vidros partidos, deixam entrar o vento por todos os lados. Mas é estranho estar tanto frio com o sol que está. Deve ser o vento que vem da Serra da Estrela – e olha que hoje até a consegues ver bem aqui da tua janela na cozinha! Realmente temos umas vistas muito boas daqui. Só é pena no Verão ver tudo a arder aqui à volta.

Acho que me vou deitar na arca da lenha e dormir um pouco enquanto ali dá o sol. E não ralhes comigo, não é preciso nem almofada nem cobertor. Eu sei que não é sítio para dormir, mas sabe-me bem. Deixa lá, sou tolo mas ando contente assim.

Ainda te lembras como eu e os meus primos nos púnhamos aqui na cozinha a apanhar moscas com copos? Virávamos os copos ao contrário, em cima da mesa, para apanhar as apanhar. Depois tapávamo-los com as mãos, com jeito para elas não fugirem, e enchíamo-los com água para nos rirmos às gargalhadas por as pobres criaturas andarem aflitas a nadar sem poderem sair da água. Realmente, éramos uns cruéis.

E quando fazes de novo as tuas papas doces? Acho que essa sobremesa se tornou uma das minhas favoritas, principalmente pela sua simplicidade. Já me tinhas dado a receita há uns anos atrás, acho que a tenho em Lisboa. Só que lá em baixo não se encontra a farinha de milho branco que se precisa para as fazer. Tenho de a enconmendar à minha tia. Nem percebo como nenhuma das tuas filhas as faz – será que não gostam? Mas elas comiam-nas sempre que as cá tinhas. Enfim, a ver se as faço para os meus amigos um dia – até vão lamber os dedos!

Andas a fazer algum trabalho em renda? Pois...que pergunta. Já sei que no Inverno, com o frio, mal podes mexer os teus dedos tortos por causa da osteoporose. Mas da última vez mostraste-me uma coisa – era para um lençol ou para um pano de linho? Já não me lembro; mas sei que estava bonito. Os que fizeste para mim estão lá bem guardados em casa, estão juntos com todas as coisas que a minha mãe arranjou e pôs no baú para o casamento. Já tenho isso, mas ainda nem noiva tenho! Não me podes fazer uma em renda, à minha medida? Em brincadeira costumo dizer ao meu pai que ainda não nasceram os eucaliptos de cujos rebentos se pagará a boda. Está a chegar a altura, bem sei, mas não tenho pressa. Tens medo de já não me veres casado? Deixa lá, vês-me solteiro e bom rapaz!

Olha, acho que me vou embora. A minha mãe vai fritar as filhós e vou lá ver ser precisa de ajuda. Da próxima vez que cá vier acima claro que venho fazer-te uma visita. Entretanto vai-te habituando a estas novas paredes, que nós vamos tentar o mesmo: mas sem lágrimas, lembremo-nos sempre das coisas boas. Mas olha, ao contrário das paredes da tua cozinha estas são brancas... só é pena serem do cemitério.

1 Comments:

At 11:51 da tarde, Blogger Nuno Guronsan said...

Há coisas que são iguais em todos nós. As lágrimas que correm pela minha face abaixo são iguais às tuas, se bem que a pessoa por quem choramos seja diferente. Mas apenas as pessoas são diferentes, os sentimentos que elas deixaram na nossa alma são os mesmo, e por isso mesmo choramos, de alegria pelas boas recordações que temos, de tristeza por não a podermos abraçar e dizer que a amamos do fundo do nosso coração.

Obrigado, amigo, há lágrimas que sabem bem verter. Abraço forte.

 

Enviar um comentário

<< Home