sexta-feira, janeiro 16, 2009

Resquício do acontecimento

Notícia choque: o surreal aconteceu.

Desligou a luz, fechou os olhos e esperou. Saboreava o silêncio que se fazia finalmente, embora um ou outro vizinho teimasse em marrar com a cabeça (ou outra coisa qualquer) numa parede. Fez as contas ao dia, como sempre faz: o que conseguiu despachar, o que faltou fazer, e lançar para o ar notas soltas do que se poderá fazer no dia seguinte. Há como sempre prazos a cumprir pelo que não pode haver derrapagens. O almoço já estava alinhavado da véspera, pelo que era menos uma preocupação a ter. E deu-lhe uma ideia, que lhe pareceu óptima, para mais uma experiência culinária num dia destes em que tiver menos que fazer. Um dia destes.

Virou-se para o outro lado, ainda de olhos fechados. Ouvia o vento a soprar e a chuva a cair frenéticamente. Que dilúvio, pensava, e que escuridão que estava no quarto. A ténue luz verde do stand-by electrónico não chegava para criar sombras. Olhava em sua volta e não via nada do que ali havia, apenas um grande vazio. Um vazio de matéria, de som, de luz, de odores.
Fechou os olhos de novo e forçou-se a não pensar em nada. Não resultou. Pôs-se a contar carneiros a saltar, depois ovelhas, cabras e cabritos. Tudo a saltar e pular de alegria, mas nada. Virou-se de novo já irritado com a situação.

E aconteceu de novo: rebolava-se de um lado para o outro, contava carneiros.

Lembrou-se que há tempos atrás vira uns jornalistas a correr atrás de dois senhores com ar austero e crachás identificativos ao peito. Reconheceu um dos senhores e o crachá do outro. Iam certamente anunciar qualquer coisa de importante, ou talvez não. Fosse o que fosse, os jornalistas lá estavam para reportar o caso em directo, com imagem e som, ou em diferido pelo papel. Quis ignorá-los porque estava mais preocupado com o que o esperava, embora naquele instante nada mais pudesse fazer a não ser continuar sentado no banco gelado e observar o que ali se passava.

Subitamente ouve alguém na sua língua, embora com sotaque, perguntar “Você também vai para Lisboa?”. Por momentos pensou que pudesse eventualmente ser a Ive, uma conhecida desconhecida, mas afinal era apenas um jogador de futebol profissional numa equipa secundária completamente desconhecida. Daí desenrolou-se uma meada de conversa que meteu países, família, futebol, distâncias e o temível medo ou prazer (dependendo do ponto de vista) de se deixar ser voado de lado para lado.

De volta ao presente. Irritado, parou de pensar no que fosse pois apercebeu-se que ainda estava acordado. Decidiu olhar para o relógio. Já tinham passado duas horas e ainda não adormecera. Pela n-ésima vez a acontecer o mesmo, regularmente ou não, detestava não conseguir adormecer. Decidiu levantar-se, dar uma volta pela casa, ligar o televisor, delisgar o televisor, beber água, lavar a cara, dar outra volta e deitar-se de novo. Tudo na mesma. Venha lá mais um carneiro, e mais outro, e outro... perdeu-se nas contas.

Subitamente vê-se, meio zonzo e tremido (tipo beam me up, Scotty), dentro de um tubo metálico a ser projectado a alta velocidade entre continentes. Já o assistira antes, pelo que não se espantou com isso. A náusea era tal que já nem os filmes reciclados e mais que triturados do IFE o animavam naquela viagem. Se ao menos fosse de volta a casa! Mas nem conhecia a origem nem o destino do seu percurso. Só sabia que algo não ia bem e que algo estava para acontecer. Enquanto isso, rebolava em transe, falava em surdina, suava em bica. Viu por fora como está por dentro do engenho que se despenha sem grandes alaridos num terreno no meio da sua povoação. Costumava haver milho ali, pelo Verão. Mas certamente que não era pista de aterragem para nenhum objecto voador ou não. Deviam estar no século XXVI de certeza, numa galáxia longe daqui, pois de outra forma tal não seria possível. Pelo menos numa situação normal, pensava.

Acordou a meio desse tormento, olhou para o relógio e ainda faltavam horas infindáveis para o chamamento da manhã. Virou-se e sentiu-se de novo envolvido pelo drama, pelo horror e pela tragédia. Não queria mais, sabia-o, mas nada podia fazer pois estava em posição inerte e inconsciente. Virava-se, rebolava, esticava-se e encolhia-se no escuro do seu quarto. Nada disso o acalmava e nisso se passaram horas até que o silêncio total o abafou por completo. Foi nesse momento que nasceu a choqueTV cujo repórter importava recrutar.

...

Novamente, os vizinhos com marradas nas paredes. Devem estar a gozar, pensou. Cansado e resignado, lá acordou. Reparou que o relógio já ia nos duplos dígitos da hora e num salto saiu da cama. Que nunca mais haja noites assim, pensava, mas sabia que não era a primeira nem seria a última. Mal sabia do que aí vinha.

Ligou-se ao mundo, abriu-se ao sol que entretanto se pôs. Depois da tempestade vem a bonança, dizem. Com os raios do sol a entrar pelo seu dia ouviu também as primeiras notícias e aí deparou-se com a notícia choque tal qual a tinha sonhado num outro canteiro qualquer. Mas que raio fulminante?

Era o Maradona em Portugal! Que milagre este! Realizou-se a profecia do passado futuro e concretizou-se o que ninguém sonhara possível. Felizmente que passou quase despercebido, apesar da breve não passagem pelo ecrã do Telejornal.

Acalmado pela irrelevância do acontecimento, assombrado pelo sono que o abalava refugiou-se de novo nos lençóis. Desligou a luz, fechou os olho e contou: um carneiro, dois carneiros, três carneiros, um cabrito no forno com batatas assadas???

3 Comments:

At 10:50 da tarde, Blogger Nuno Guronsan said...

Parece que acabei de reler um livro há muito esquecido. Fui colando um pedaço daqui, outro dali, um messenger daqui, um telefonema dali, um sms de acolá. E voilá, parece que acabei de ler um moleskine teu, do qual já sabia (quase) toda a estória.

E o final é digno dos Monty Python.

:)))

 
At 4:27 da tarde, Blogger Hortelã Pimenta said...

Que contes muitos !!!

carneiros e (hi)e-stórias!

 
At 5:15 da tarde, Blogger Polly Jean said...

lindo!
as minhas flores perduram...!

 

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