quarta-feira, agosto 16, 2006

Resquícios de areia, sal e espuma

Esta é uma carta ao Rei do Mar, merecedor de respeito pela vida que leva, dador de riqueza pela vida que dá. E é uma carta à Sophia, amiga desconhecida e entretanto desaparecida, que tão bem escreveu e me inspirou da infância até hoje com os seus livros alegres e inocentes.



Dei comigo, há dias, a reparar como a areia da praia escorria entre os meus dedos, apesar de ter a mão bem fechada. Ignorei isso. Dias depois vi que a espuma do mar corria pelo areal num frenesim arrepiante, por estar vento forte. Ignorei isso também.

Há dias em que a dificuldade de somar 1 mais 1 é estonteante e que por isso se revelam dias entediantes, sejam dias de lazer ou trabalho. Não quero alegar que a areia do mar e a espuma do areal tenham correlação entre si ou sejam responsáveis pelo caos do universo, nada disso. Mas acredito que o simples facto de não repararmos em tantas das pequenas coisas que nos acontecem no dia-a-dia nos possa provocar uma falta maior mais tarde. Estar atento aos pormenores versus perder a visão global de algo ou simplesmente ter o domínio completo das coisas, sejam ínfimas e irrelevantes ou aquelas com impacto tremendo.

Afinal o que estou aqui a escrever? Denuncio a minha desorientação: dedilho fados de palavras sem nexo, escrevo tanto sobre nada sem reparar que as páginas ficam em branco. A laranja seca não dá sumo. Estarei a delirar?

[Faça-se um minuto de silêncio para recuperar forças]

“As formigas aqui têm antenas muito maiores do que as nossas” foi uma deliciosa observação ouvida hoje. “Duvidas? Observa!”. Honra seja feita ao seu autor.

Dizia eu deliciosa porque se encaixa perfeitamente na minha presente linha de raciocínio (se é que ela existe): os detalhes também são importantes. Os detalhes dão o sal à vida; o sal do mar que se saboreia de todas vezes que se olha para ele. Os detalhes colocam-nos um sorriso de orelha-a-orelha e que nos levam a esquecer a chatice do dia-a-dia.

Se não fosse assim aquela praia seria a mesma praia de sempre: a areia escorreria todos os dias da mesma forma; todos os dias a espuma do mar voaria pelo areal como sempre voou. Mas não: naquele dia eu reparei nisso, apenas por acaso, pois nada havia que o tivesse provocado. Acasos acontecem, mas foi esse acaso que me deixou feliz por uns instantes. Foi esse acaso que alterou aquele dia triste e cinzento apesar de a praia ser a mesma há meses seguidos e eu já a ter percorrido vezes sem conta por não ter mais que fazer.

Murmuro para comigo e meus botões que as coisas se alterarão um dia. Espero atentamente o dia em que o mar me revelerá a sereia que vai salvar-me da minha solidão e apresentar-me áquilo que ansejo ser uma vida de felicidade eterna. Que venha doce, meiga, empolgante e desafiante ao mesmo tempo. Acima de tudo, que eu esteja lá (onde quer que seja) para não perder esse pequeno pormenor da minha vida que a pode revolucionar. Que seja como a Menina do Mar que vem seduzir o menino da terra. Que eu lhe possa oferecer a mesma rosa perfumada mas que essa não produza saudade, mas alegria e amor.

Enfim, a vida continua – o mar lá estará à minha espera.