sábado, março 03, 2007

Resquícios da mentira

Esta não é uma carta: é uma mentira. Porque não há remetente nem destinatário, porque não há envelope nem selo. É qualquer coisa, desta vez sem rótulo.


Ora aí está. No espaço de poucas horas caíram toneladas e toneladas de uma matéria branca que daqui a poucas horas poderá já ter desaparecido de novo. Nesse entretanto houve almas que quiseram desvirginar a dita matéria, deixando as suas marcas de mãos ou pés, ritual que se repete sempre e sempre de novo. O estranho é que com o desaparecimento da matéria, também a obra desapareceria como que num acto de esquecer ou perdoar o que se fez. Isto é muito ridículo: afinal não passa tudo de uma mentira fugaz e sujeita à volatilidade da matéria.

Pior que isso é saber que afinal há muitas mais mentiras semelhantes:

  • Mentimos aos nossos filhos, sobrinhos, amigos que lá pelo final do ano vem o Pai Natal sabendo perfeitamente que somos nós mesmos quem criamos o símbolo do consumismo em vez de dar lugar à história verdadeira.
  • Mentimos à primeira namorada ao dizer “amo-te” sem saber afinal o que é o amor.
  • Mentimos à nossa segunda namorada ao dizer “amo-te” julgando tê-lo encontrado, mas afinal também não foi desta.
  • Mentimos a nós próprios ao aceitar mais um pouco de um vício que sabemos que nos faz mal à saúde... e que desculpamos com um seco “o que não mata endurece” que tanta fúria nos causará quando estivermos às portas do hospital ou da morgue.
  • Mentimos ao nosso patrão, dizendo-lhe que gostamos do nosso emprego, mas começamos a maldizê-lo (a ele e ao emprego) assim que saímos da porta para fora para preencher o Euromilhões na esperança de cair uma chuva de dinheiro que resolvesse todos os problemas.
  • Mentimos ao nosso bolso, prometendo-lhe mundos e fundos se ganhássemos o Euromilhões, mas na verdade é ele que dá a moeda que permite pagar a quota das 5+2 cruzes que a poucos traz alegrias.

Enfim, são tantas as pequenas mentiras do dia-a-dia que às vezes me pergunto o que há de verdadeiro na vida.

  • Será a conversa com os nossos botões, esses que sabem tudo sobre nós, nossa vida e ser, e que verdadeiramente se calam para todo o sempre? Vivam os botões então!
  • Será o rumo que dificilmente tentamos dar às coisas, quando afinal andamos ao sabor do vento e das marés? Vivam então o vento, o mar e a lua (na verdade nem essa devia ter honras de verdadeira, porque envergonhada se eclipsa de vez em quando; sabe-se lá o que faz nos momentos em que se esconde).
  • Será a matéria física perene e estável? Vivam então a pedra, o alcatrão e o cimento! Mas na verdade, mesmo esses podem, por acção humana ou não, deixar de existir na sua forma originalmente construída.
  • Será a matéria que não tem corpo físico? Viva o ar que respiramos e nos dá vida, a palavra de honra que recebemos com um bater de mãos, o beijo carinhoso que damos de olhos fechados (porque de olhos abertos já se sabe que é desconfiado). Nada disto vemos ou tocamos, mas existe e é real?

Haja alguém que me ilumine!