quarta-feira, outubro 31, 2007

Resquício da tortura virtual

Isto segue em resposta ao desafio publicado aqui, intitulado de tortura virtual sem o ser. Obrigado amigo, pelo desafio e este livro que trouxe comigo em mais esta viagem.
Imediatamente a seguir, apareceu a mãe à porta com uma travessa de carne e,
pouco depois, a irmã com uma travessa cheia de batatas.
De: Franz Kafka; Os Contos; Assírio & Alvim

sexta-feira, outubro 19, 2007

Resquícios da liberdade

Esta carta é um bem-haja a todos os amigos, sejam ou não meus. Por existirem, por aceitarem e perdoarem. Por o serem.

Blublub, dizes tu enquanto passas em vôo rasante. Cumprimentas quem vês, saúdas os que te acompanham. Sentes-te como um peixe na água: liberto de tudo, aberto a tudo. Estás sempre no teu elemento. Nadas a toda a velocidade cheio de vigor e energia ou então encostas-te a uma onda de água doce sendo suavemente arrastada por ela. Sentes-te livre e contente, nessa alegria e simultânea melancolia da tua existência. Pareces incansável. E no entanto...

No entanto, esbarras sem querer contra uma medusa e um ouriço-do-mar que partilham contigo o mesmo espaço físico. Roças as ostras coladas às rochas.
Arrepias-te com medo da dor. Receias o choque eléctrico de uma ou os espinhos aguçados do outro. Pedes perdão pelo que fizeste. Pelo que poderás vir a fazer. Pelo que pensaste. Preferes pensar antes de fazer e no entanto ...

Serás como um peixe que dificilmente pára num sítio, nunca parando quieto em lado nenhum? Será expressão de vida alegre ou de acossada? Diz-me lá, de que te serve andares a rodopiar no teu tanque de água? Afinal, não passa mesmo de um espaço fechado em que podes muito bem nadar à tua vontade mas estarás sempre castrado pelas paredes que te cercam. Isto da liberdade é muito relativo.

Sentes-te livre e preso ao mesmo tempo. Sabes que nada podes fazer, porque tudo o que tens foste tu que escolheste. Sabes que tudo podes fazer, porque tudo o que podes ter serás sempre tu a escolher. Pelo menos queres pensar assim. Lutaste muito, sem qualquer dúvida, mas ainda assim não te sentes satisfeito. Não se trata de ambição ou ganância e muito menos de arrogância. É mais uma insaciável e enorme curiosidade que tens em ver tudo, aprender cada vez mais. Voar livremente nessas águas gélidas que encontras em cada nuvem que atravessas.

E no entanto, de vez em quando trazes contigo um ar de triste e profunda dor como se trouxesses aos teus ombros todo o mal do mundo. A gravidade pesa. A gravidade não como lei da física, claro, mas como substantivo feminino que define uma circunstância perigosa, intensa e importante. Com circunspecção. A este propósito lembraste-te de um livro que leste com enorme prazer “A Nuvem Prateada das Pessoas Graves” de um amigo teu de longa data. Diz ele:

“Nem sempre se deve desconfiar das pessoas
graves, aquelas que caminham com o pescoço inclinado para baixo,
os olhos delas a tocar pela primeira vez o caminho que os pés confirmarão
depois.
[...]
Estas imagens podem desaparecer para sempre se forem pisadas quando caem no chão. A gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, destas pessoas, é por isso, uma subtil forma de cuidado.”
De: Rui Costa; A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, Edições Quasi
Aí está ele de novo. Esse cuidado extremo com que fazes as coisas. Apesar da alegria, da energia e de toda a vida que tens em ti. Já viste isto há muito tempo. Mas como podes tu assentar os pés na terra se, como peixe que és, nem sequer pés tens? Como podes assentar os olhos na terra se, como peixe que és, tens os olhos do lado de cima do teu corpo? Aí acabou a tua liberdade. No fundo esbarraste contra os limites da tua própria existência. Os limites do teu ser, da tua consciência. Essa, que às vezes pesa mais do que queres.


Ai liberdade, tantas vezes cantada, por tantas vezes lutada. Tem-la e no entanto nem te apercebes dela. Tem-la e às vezes preferirias abrir mão dela para teres uns momentos de paz. Teme-la todos os dias pois sabes o que sofrerás no dia em que não a tiveres.

Aí está ele de novo, esse olhar, esse sentimento. Mas continuas a nadar. Tens de continuar. A vida não espera. Blublub.